domingo, 17 de agosto de 2014

CCLXXXV

Quis apossar-me do tempo
mas o Tempo, imaginário,
não me deixou alcançar.

Sônia Regina (*? +?)
In: "O pássaro de jade" (Laemmert, 1946)
Apud:  Malba Tahan

3 comentários:

  1. Meu muito estimado, Manoel, permita-me fazer aqui, em sua página, mais uma associação alusiva, ou, dito em termos gramaticais, realizar mais uma intertextualidade.

    Há dias, quando li esse fragmento de Sônia Regina (quem ainda desconheço), me recordei de um (invariavelmente) belo poema de Manuel Bandeira. Logo, me sobreveio a vontade de transcrevê-lo aqui. No entanto, sem lembrá-lo de cor e em que obra de Bandeira o li, não pude realizar a minha vontade de imediato. Hoje, trabalhando na biblioteca, e em certo momento, com um tempo livre, fui até a prateleira dedicada à obra de Bandeira para tentar resgatar o poema, e, felizmente consegui achá-lo!

    O poema se chama "Céu"; é assim:

    " A criança olha
    para o céu azul.
    Levanta a mãozinha.
    Quer tocar o céu.

    Não sente a criança
    Que o céu é ilusão:
    Crê que não o alcança,
    Quando o tem na mão."

    (In: "Os melhores poemas de Manuel Bandeira" / seleção de Francisco de Assis Barbosa - 10ª ed. - São Paulo: Global, 1996.)

    Pensei no "céu" do poema de Bandeira equivalente ao "Tempo" do poema de Sônia Regina, de forma que trocando a palavra "céu" no poema de Bandeira por "Tempo", tanto se consegue obter o mesmo sentido da poetisa, quanto ainda, substituídas as palavras, o eu-lírico de Bandeira acaba por desempenhar a função de interlocutor do eu-lírico de Sônia Regina, oferecendo-lhe uma solução ou revelação de sua ilusão - visto que esses versos de Sônia Regina retratam um estado de ilusão.

    Feitas as alterações, teríamos:

    "Não sente a criança
    Que o [Tempo] é ilusão:
    Crê que não o alcança,
    Quando o tem na mão."

    Assim mesclado, o poema revela que a ilusão não consiste em ser o tempo imaginário ou inatingível - como dizia as palavras do eu-lírico de Sônia -, mas na crença de que ele não sei deixa alcançar, enquanto, na verdade, está já em nossas mãos - como esclarece o eu-lírico de Bandeira.

    Por fim, a revelação do poema não deixa de ser debitária de Sêneca, para quem também o tempo era "objeto" de posse, e mais, o nosso único bem - lembre-se as palavras dele: "Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso".

    Bela citação; bela temática, Manoel.
    Um afetuoso abraço!

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    1. É claro que não precisa pedir permissão, Bruninha. Mais que bem-vindos, sua cultura, seu lirismo e sua agudeza de espírito são um deleite à parte. Sem sua companhia este blogue certamente não seria o mesmo.

      Foi nesse belíssimo diálogo entre os poemas criado por você, aliás, que o post de hoje (CCXCI) foi inspirado. Enquanto a adaptação do poema de Bandeira transcende os versos de Sônia, as palavras de Salomão os complementam ou corroboram, veja:

      Quis apossar-me do tempo
      mas o tempo, imaginário,
      não me deixou alcançar.

      Pois mil anos, aos Teus olhos,
      são como o dia de ontem que se foi.

      Penso que essa inscrição teria sido uma feliz escolha para figurar na lápide de Sêneca, o que acha?

      Fraternal abraço.

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    2. Meu querido amigo fraterno, Manoel, não poderia deixar de vir agradecer-lhe o acolhimento sempre cordial e de consideração sincera aos meu comentários. Obrigada, de coração franco, pela irmã recepção e contribuição atribuída às minhas visitas. Lisonjeia-me tamanho tratamento afetuoso.

      Gostaria que soubesse que minhas reflexões, meu entendimento das coisas e instrução devem muito às condições que você cria para eu desenvolvê-los: estejam elas no seu caprichado e atento diálogo das respostas aos meus comentários, estejam elas ainda na simples divulgação de frases, versos e máximas breves e sempre instrutivas a cada postagem.

      Tenho uma estima especial pelo"Epitaphius". Considero-o um espaço votado à questões as mais nobres. A minha experiência de passagem por aqui frequentemente deixa-me a impressão de desfrutar de um raro privilégio: ter contato com a grande sabedoria e dela desfrutar o desenvolvimento de minha pessoa e espírito.

      Discutimos frases e aprendemos sobre a vida; assim se constitui a visita aqui. Um exemplo vivo e próximo é este desta postagem. Quanto temos a aprender com a lição da ilusão do tempo inalcançável, não é mesmo? "O dia de ontem que se foi" não é outro e o mesmo tempo daquele que estamos vivendo. Sêneca, e até Marco Aurélio, sim, você sugeriu bem, certamente se contentariam com uma inscrição desse tipo. A mensagem é a mesma nesses três célebres autores clássicos em atitude de corroboração aos autores brasileiros - pois sim, também concordo com você que essa frase de Salomão complementa a de Sônia: "nenhuma diferença faz verem-se os mesmos fatos por cem anos ou por duzentos, ou eternamente; [...] a perda é igual tanto para o de vida mais longa como para quem morre cedo, porquanto o presente é a única coisa de que será desapossado, pois só tem este e não perde o que não tem." (Marco Aurélio, "Meditações").

      Então, meu amigo, obrigada pelo contato com seu seleto espírito, tão interessado em questões maiores; tão proporcionador de reflexões valiosas.

      Outro fraternal abraço!

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